apoio

rafael
9 min readFeb 12, 2022

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trabalho nesse hospital a quase dois anos e tudo que fiz foi apoiar. veja bem, eu sou estagiário na área administrativa mas já fiz muita coisa aqui que nem tava nos planos. até parece gozação, mas tu precisa levar uma caixa lá do outro lado do hospital? manda o otário. precisa de alguém pra ficar plantado arquivando bagulho no almoxarifado? manda o queridinho. isso. me manda. eu adoro. adoro porra nenhuma. sempre sou o apoio dessa merda. tá certo que não tenho lá uma formação acadêmica das melhores pra esse pessoal: estudante de filosofia numa federal é de respeito, mas não pra eles. aqui a coisa é muito menos sentir e muito mais agir — e tô sempre agindo, aqui e lá, como posso, apoiando. dessa vez faltou a menina da biblioteca do hospital; não tinha outro trouxa pra colocar no lugar e adivinha pra quem sobrou?
cheguei no cubículo rodeado por paredes de vidro e encontrei a folha em cima duma mesa com o nome dos outros condenados que já estiveram aqui “noemi, das 8 às 13h”, “bárbara das 13 às 16h” e eu assinando a linha de baixo. já tô há duas horas e aconteceu merda nenhuma. zero emoção. e que biblioteca fraquinha, meia dúzia de livros com assuntos totalmente desinteressantes (ok, alguns são legais, tipo o que fala sobre câncer no cu). a parada é que me sinto como se tivesse dentro da grande área dum campo de futebol, e eu sou o goleiro que observa de longe metade do jogo, rolando no ataque da equipe adversária. tô aqui esperando um atacante, uma jogada complicada pra defender… honestamente não sei se me esforçaria muito pra pegar a bola.
a biblioteca dá de frente pra um bistrô cheio de gente nojentinha comendo. só cabeça dourada e careca. e o problema é que, assim como os vejo eles também me veem, confesso que gosto. sou vouyer pra caralho e isso ajuda a raciocinar algumas coisas. sentado numa cadeira confortável não posso reclamar muito.
na função de observar e fingir que estou mexendo no computador da firma avisto uma família peculiar. de frente pra mim tá um velho bem simpático junto do filho e da esposa, aparentemente. ela uma baranga rica cheia de plástica, com a cara que parece de cera e o filho um mauricinho com pinta de abelhudo. e não para aí a degeneração: ninguém conversa. só o velho vez ou outra tenta contato com a mulher e o garoto. nada se desenvolve. nisso ele começa ficar meio entediado e procura algo mais interessante. puta merda, o velho olhou diretamente pra mim. tento disfarçar olhando pro computador, tenho consciência de que encarar alguém não é lá a coisa mais educada, mas não resisto. no final, acho que somos parecidos.
volto a olhar de canto e o velho ainda tá olhando pra cá, dessa vez encarando os livros. fala alguma coisa pro possível filho e o guri dá de ombros. toma mais dois goles do café numa xícara minúscula e começa a se esforçar pra levantar — e se esforça mesmo! o velho tá se peidando pra continuar de pé e vem lentamente até a porta, também de vidro, da biblioteca. abre a porta se tremendo. pensei em ajudar, mas preferi não manter contato visual.
entra meio tímido. eu sabia que ele era meigo, não sinto nada de ruim desse sujeito, vindo de mansinho e perguntando num tom um pouco alto “aberto ao público?”, respondo que sim dando um sorriso amarelo. ele para de pé e se apoia na bengala, coloca a mão fechada sobre a boca encarando cada um dos livros até escolher um sobre a natureza — que pena, tinha que ser o sobre cu…
um tempo depois percebo que o velho aparentemente é surdo, vejo no ouvido esquerdo um aparelho. talvez por isso os familiares não respondiam, conversar com gente velha e surda deve ser um saco.
cansei de ficar analisando o velho e toda aquela gente, decidi abrir um livro no computador — gosto de albert camus. tentativa frustrada, no momento entra outro na biblioteca à procura de um livro de medicina e por acaso era o livro sobre o câncer no cu. sem muito esforço me fiz de entendido e entreguei o livro pro cara ler. falei com propriedade “esse é o livro sobre cu!” — não desse jeito, mas disse. percebi que o velho surdo ficou impressionado com a minha exatidão. com ambos distraídos volto para a minha leitura, mas pelo jeito a leitura sobre cu do outro cara não foi tão proveitosa. só escreveu umas coisas num caderno e largou de novo o livro na estante. ri pra dentro pensando no caderno do cara escrito “câncer no cu, cu, cu e cu”. brilhante.
na biblioteca também tinha uns computadores e esse mesmo cara sentou pra dar uma navegada. gente rica é realmente muito previsível: botou no youtube “beatles, a hard day’s night”— previsível e patética. a música é boa, mas duvido muito que esse cara ralou muito usando essa camisa polo rosa, e certamente a vida dele deve ser triste o suficiente pra que a única felicidade seja ser daddy de alguma novinha de 19 anos que ele está disposto a pagar uma bela grana pra receber um belo boquete.
escutou a música ao mesmo tempo que pesquisava qualquer merda no google. saiu em seguida deixando só o rastro de perfume. novamente só eu e o velho surdo.
nessa de ir e voltar pra fechar as abas o velho me atacou perguntando “garoto, qualquer um pode usar o computador?”, respondi que sim e ele continuou, “é que pensei que era só pra estudante do hospital”, “não, qualquer um pode usar!”, “hãn?”, “QUALQUER UM PODE USAR”, respondo em tom mais alto. nessa hora comecei a gesticular com as mãos pra ele entender melhor, realmente é bem surdo e não quero gastar minha voz. “no caso, tu trabalha aqui ou é estudante?”, “eu trabalho na faculdade do hospital e tô dando um apoio…”, “ah tu é estudante de medicina?”. nesse ponto se abriu uma porta para mim, era a minha chance de me divertir um pouco. “sim, eu trabalho no hospital e sou estudante de enfermagem, mas não medicina”, “quê?!”, “sou estudante de enfermagem”, “ah que bacana!, eu sou cardiologista”, “bacana”, “vem cá, tu conhece o meu filho, ricardo?”, “não”, “ele é estudante de enfermagem daqui também, tu já deve ter visto ele, certeza”, “não recordo de nome, mas talvez sim”.
estou completamente eufórico. mentir foi a coisa mais divertida que poderia ter feito naquela tarde, mas me certifico se o filho do velho não tá por perto, corria o risco de me desmascarar na frente do coitado. dou uma levantada de pescoço e espio. vejo ninguém. “tu já tá finalizando?”, perguntou, “sim, tô no último semestre”, “desculpa, não entendi”, “TO QUASE TERMINANDO O ÚLTIMO SEMESTRE”, “ah, sim, pretende fazer pós?”, “claro, em pediatria”. nem me esforço na mentira, eu odeio criança. “então tu gosta de criança, meu filho vai seguir meu mesmo caminho”, “cardiologia!?”, “sim, vai cuidar do velho dele. engraçado ser cardiologista e com problema no coração, né?” soltou um sorriso revelando os dentes brancos, possivelmente de porcelana, o velho deve ter fumado pra cacete na juventude. cheque mate.
“acontece, a vida tem dessas”, “a vida?”, “A VIDA TEM DESSAS”, “ah, pois é. mas vem cá, tu deve tá fazendo estágio agora, né?” “sim, inclusive tá quase na hora”. verifiquei no celular, 17:32. “entendi. pois bem, não quero te atrapalhar”, “capaz, não me atrapalhou não, foi ótima a conversa”. possivelmente ele não ouviu porque só soltou um sorrisinho tímido.
confesso que aquilo que começou a me corroer por dentro. não só pelo medo de ser desmascarado porque a mentira foi longe demais, mas gostei do velho. não esperava alguém tão gentil nesse lugar.
agora ele foi pro computador, faltava pouco pra fechar a biblioteca e rapidamente já esqueci toda aquela coisa porque era sexta-feira. quero ir pra casa fumar maconha.
aliás, o estrangeiro de camus é realmente bom. gosto da constatação sobre ser estrangeiro a um mundo sem significados porque no final sempre buscamos sentido em qualquer merda que fazemos, mas é impossível não me conectar comigo mesmo sem me dar algum propósito nessa função de apoiador. no final acho que nasci pra isso e sempre serei isso, o apoio de outras pessoas e de uma função nem um pouco essencial. assim como o velho, eu e a biblioteca. existentes de uma simultaneidade conveniente. ainda teríamos essas paredes de vidro revelando o interior de um local minúsculo e luxuoso dispondo de livros acadêmicos que outras pessoas com propósitos não muito diferentes da minha função de apoiadores estariam condenados a entrar. penso em quantos pacientes esse velho já não precisou ouvir em consultório, quantos pacientes ele precisou apoiar depois de uma cirurgia de risco, mas hoje mal consegue conversar com os familiares. observo-o novamente e, talvez, tenha até marca-passo! fico feliz por ter tido esse momento com o velho. por mais mentiras que eu tenha dito, foi uma troca verdadeira. ele no final da vida e eu no final do expediente.
vejo que a família não está em volta e pelo visto ele não tem muita pressa pra sair do computador. preciso fechar a biblioteca. eu preciso ir pra casa. eu preciso descansar.
levanto e fico parado alguns metros longe dele e começo a chamar “senhor?”, foi num tom levemente alto, mas não precisava gritar. não ouviu. “senhor? preciso fechar a biblioteca…”. nenhuma reação, continuou olhando pra tela do computador, nem pela visão periférica ele me notou, talvez tenha catarata também. fico em silêncio alguns segundos e decido ir mais pra perto e tentar encostar no ombro. digo mais uma vez antes de tocá-lo “SENHOR?” e deito minha mão sobre o ombro. no curto instante entre falar em tom mais direto e tocá-lo o velho tomou um susto deixando escapar um grito abafado e entrecortado, virando todo o pescoço na minha direção e mantendo o tronco rígido para frente. ele se assustou com a minha presença inesperada. talvez o aparelho estivesse mais alto do que eu pensava. foi engraçado, mas não por muito tempo. o rosto do velho congelou na reação, de boca aberta e olhando diretamente pros meus olhos ele não movia mais nenhum músculo. meu sorriso se desfez. eu matei o velho. eu matei o velho de susto.
não consegui acreditar, chamei mais algumas vezes e nada. começo a procurar ajuda com os olhos e coincidentemente vejo o filho e a mulher do lado de fora.
fico durante um tempo encarando ambos até o que o filho toma consciência e entra na biblioteca “meu pai tá bem?”, só consigo balançar a cabeça olhando pra ele e pro velho. o filho se dirige pra perto e tenta manter contato com os olhos do velho que ainda me encaravam. dou alguns passos pra trás saindo do campo de visão, agora tomando a direção do teto. “por favor, chama alguém!”, disse o cara jogando a mão direita pra trás e balançando na direção da porta. começou o processo de reanimação. eles eram muito parecidos, quase idênticos. antes de me dirigir à porta a mulher já tinha chamado os médicos, acabei descobrindo que ela também era filha do velho. “ele tinha acabado de sair de uma consulta, meu pai tava bem”, disse pra alguns enfermeiros que enchiam a sala. pediram espaço na biblioteca. fomos forçados a sair ao mesmo tempo. eu fui o último. enquanto saía e via o corpo do velho no chão caí com os olhos para o computador que ele estava acessando, aberto em um site budista: ENSINAMENTOS SOBRE A VELHICE, POR BUDA SHAKYAMUNI.
não consegui dizer uma palavra para os familiares. resolvi sair de perto. peguei minha mochila, escondi o crachá e por sorte, na saída, estava um colega, vitor.
ele era religioso, senão me engano protestante. uma vez ele me deu uma bíblia de presente da qual nunca li. resolvi confessar o que aconteceu.
“cara, que rosto é esse?”, “eu matei o velho”, “que?”, “eu matei o cara dentro da biblioteca, de susto, eu odeio esse trabalho”. no susto eu já havia começado a chorar. coisa patética, sou estudante de filosofia. a morte não poderia ter um impacto tão negativo na minha curta experiência de vida. até que o vitor, com toda sua calmaria — e talvez amplitude espiritual — disse “Ninguém faz bem o que faz contra a vontade, mesmo que seja bom o que faz.”
até agora não entendi muito bem aquelas palavras. são do santo agostinho, mas não sei se foram uma crítica, um consolo, um direcionamento. um aviso.
deito na minha cama já com o baseado em mãos. olho para o teto e acendo. faço dessa fumaça minha forma pensamento pelo episódio. esqueço tudo depois. estou ouvindo agora “beatles, a hard day’s night”.
amanhã preciso acordar cedo pra apoiar.

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