ECRÃ 2021: DIA #4

rafael
6 min readJul 19, 2021

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Um longa. Dois curtas. Dois videoarte.

DESAPRENDER A DORMIR | Gustavo Vinagre | 96 min.

"Acho que pornografia é arte. Mas só uma pequena porcentagem do pornô é arte. [...] Para ser arte, tem que ter várias camadas possíveis de interpretação e tem de ser algo consciente. Precisa ser algo que gere questionamentos. Precisa, minimamente, não ser exploradora, o que é muito difícil." - Bruce LaBruce

Um filme de Gustavo Vinagre estar disponível gratuitamente no Festival Ecrã demonstra muita coisa pertinente para a discussão sobre o cinema e a pornografia. Especificamente, o crítico Igor Nolasco trouxe em seu texto "Arte como ponografia aos olhos do digital", no site Plano Aberto, uma análise importante de como o cinema brasileiro, principalmente em obras com cenas de sexo são comumente higienizadas por streamings e pelo público em geral, categorizando-as, mesmo que simuladas, como proibidas. De modo injusto, por diversos motivos, categorizam os mesmos filmes como sendo, de modo pejorativo, "filmes pornográficos", e a discussão pode tomar várias linhas de interpretações, mas um tempo necessário para conseguirmos distinguir como os filmes brasileiros sofrem de uma limitação higienizada por sua categoria "pronochanchada" desde a década de 70. Uma definição que está longe de ser a mais adequada a partir do momento em que diretores como José Mojica Marins, por exemplo, buscavam um sentido de enfrentamento sociológico através de suas histórias e seus personagens em relação a sociedade brasileira das décadas de 60 e 70 e menos por um produto para o mercado pornográfico (principalmente quando sabemos que Mojica dirigiu filmes pornôs por um motivo muito mais de necessidade financeira, algo que é importante apontar como sendo, infelizmente, comum para várias pessoas numa questão de último recurso de sobrevivência) — ainda assim é apenas mais uma das diversas censuras que o nosso cinema sofreu. É quando encontramos, no meio do caminho, o filme Desaprender a Dormir com uma certa ambiguidade. No momento em que a nudez frontal e o sexo explítico necessitam de uma prática fundamental para as discussões sobre saúde mental geradas pela pandemia e que igualmente seriam injustiçadas pela censura das décadas anteriores — contextualizando nas palavras de Bruce LaBruce: "Precisa ser algo que gere questionamentos.", é fundamental resgatarmos em obras do Cinema Marginal nas quais o sexo era muito mais um dispositivo de representações do que unicamente o ato sexual por ele mesmo. O cinema e a pornografia tem uma relação muito mais ampla do que unicamente um portal de satisfação sexual individual para o espectador — fora do sentido mercadológico — que se acende no momento que acompanhamos a rotina dos personagens Flávio e José, contaminados por estímulos sexuais. Flávio trabalha editando vídeos pornôs, coisa que atrapalha a concentração de José em seus estudos matemáticos para finalizar a teoria de que todos os sonhos humanos são amostras de uma realidade muito próxima. O casal sofre, entretanto, de uma incercia acumulativa que gradualmente limita os prazeres sexuais de ambos. Na busca pela resolução do problema, surge Hypnos, uma espécie de Sandman que ensina a partir do sono a arte de descansar, em seu canal do Youtube, seguido por ambos e por outras pessoas com problemas de insônia. Mas o curioso é como esse método místico do youtuber não anestesia seus pacientes unicamente para o prazer do descanso, mas sim em partida para uma satisfação transcendental pela alma desejante. Em um transe hipnótico, aos que se dispõem para Hypnos, encontram através das próprias dores um modo de enfrentamento e aceitação. Após o hipnotista iniciar o processo, o paciente canta uma música de ninar composta por palavras que indicam seus traumas anteriores ao começo da consulta até o sono profundo. Nesse sentido, após uma longa jornada de autodescoberta do casal em cenas de sexo explícitas com outros homens, finalmente atingem o nirvana estabelecido pelos próprios estímulos sexuais entre eles, porém, não por uma canção, mas pelo corpo. Sendo assim, o sexo novamente como representação de uma possível libertação ambígua através dos extremos do corpo, de Gustavo Vinagre e Caetano Gotardo, em uma consciência profundamente satisfatória que se sustenta através de uma narrativa, por muitas vezes verborrágica, que não parece ter uma construção gradual de um possível desconforto, e talvez isso possa acabar gerando um desconforto no espectador uma vez que o sexo não apresenta uma perturbação para os personagens até boa parte do filme. Nisso, Desaprender a Dormir parece se localizar nas palavras de Bruce LaBruce no momento em que o sexo não se encontra num valor apelativo, explorativo ou sujo, mas de uma jornada de autodescoberta idealizada a um sexo que não surge como uma condenação aos personagens, mas um dispositivo de reencontro — e, por sua vez, tem um caminho controverso já que a descoberta não se apresenta de forma conceitual, mas de acordo pela exposição dos mesmos artistas com seus nomes nos créditos finais do filme, caminhando sob um véu muito delicado que é, e sempre vai ser, adversa a qualquer idealização sobre a fala de LaBruce acerca da exploração da pornografia e essa desconfortavel relação entre arte e o mercado pornográfico que ele salienta ser difícil de aceitar, principalmente, do nosso lado como críticos, de tentar tirar qualquer coisa artística do mercado pornográfico. Mas eu acredito que tenha muito de cinema em Desaprender a Dormir e na intenção do festival Ecrã ao divulgá-lo, gratuitamente, até o dia 25 de julho.

ABUTRE NEGRO | Kevin Jerome Everson | 3 min.

Curta friamente técnico. Um exercício sobre a luz que quase não sobra nada de abstrado, a não ser pelo título ampliando uma visão sugestiva da observação da lua entre as nuvens, de um possível registro místico. Cairia muito bem com um saxofone da Lisa Simpson. (https://youtu.be/V86xXwaqPOU)

CHORAR | Maya Skye Henderson | 3 min.

Um Andy Warhol convencional. Henderson abusa bastante das luzes e da montagem para executar muito mais do que só o choro pelo choro, mas nisso paralelamente acaba sendo o exercício pelo exercício, convencional e cosmético.

80.000 ANOS | Christelle Lheureux | 28 min.

Tem um senso de humor muito pontual. Essa divisão de planos em duas telas localiza a personagem nos ambientes como se ela não pertencesse realmente a eles. Ela, em si, mostra-se como um universo particular, deslocado. Com essa presença meio bobinha e meiga da Laetitia Spigarelli somos conduzidos a esses encontros e à uma crônica de uma mulher perdida e melancólica. A arqueologia está para a personagem assim como a beleza está para a natureza, das quais ela constantemente busca ser pertencente, mas que simutaneamente (visualmente falando) o universo também está em sua procura. A cena da vaca, por exemplo, é o ápice desse encontro. Nesse jogo malicioso de planos e contra-planos, encontra no úlitmo momento — em plano geral — uma doçura meio linklateriana, totalizante, da utopia do encontro.

ALÉM CÁ | Vitória Severo | 3 min.

Há alguma coisa com essência de Fernando Pessoa, "Tabacaria", nesse acúmulo de fragmentos de Vitória Severo. Entretanto, no poema de Pessoa existia a possibilidade de interação com o mundo observado da janela do poeta. Já para Severo, em quarentena, o espaço da janela do quarto da cineasta, aberto para o mundo lá de fora, é estranhamente distante. Coisa que ela tenta reviver, de modo pontual, inserindo sons miméticos para o conjunto de fotos, contextualizando uma possível vivência não permitida. Um belo exercício de contemplação à trivialidade.
(Obs: sou de Porto Alegre e foi muito legal reconhecer a rua em que passei várias vezes de ônibus indo para o trabalho, durante 2019/20).

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