ECRÃ 2021: DIA #6

rafael
4 min readJul 22, 2021

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Três vídeoartes. Um filme.

O PROFUNDO (FUNDO) SONO | Johannes DeYoung | 6 min.

Nesse exercício ansioso das modelagens e da narração, DeYoung utiliza da voz robótica e de um fluxo obsessivo nesse holograma eletrônico de uma cidade - ou parte dela - no objetivo de minimizar qualquer sentimento universal de um pesadelo. Tudo parece deformado dentro dessa cidade chapada e surge na música sempre uma retomada de direção, como se nesse pesadelo o sujeito tivesse dentro de uma sandbox geracional que não encontra uma resolução, apenas pensamentos ilusórios. E nisso o videoarte consegue apresentar muito bem tanto pela narração quanto pela estética.

COOL FOR THE SUMMER | Vitória Liz | 6 min.

Quando ela fala que só consegue lembrar das coisas que está vendo - uma coisa meio berkeleyiana - indica de forma muito objetiva o trabalho de Vitória Liz, rasgando a galeria de fotos, de um tempo pré-pandemia, e a relação da mesma com a saúde mental, que, mesmo numa narração aparentemente improvisada (pausada), tem uma unidade conservada de uma ideia central que se cria como se fosse um anagrama pelas fotografias e a narração em busca das lembraças (uma percepção real). A coisa fica realmente concreta quando ela cita a cena de uma série sobre o corpo e a alma. É uma constante busca não só em um futuro melhor, mas também de um passado carnavalesco... Até porque andorinha sozinha não faz verão.

INVASÃO | Hannah Maia | 3 min.

Talvez seja o material audiovisual que mais fala sobre sexo sem mostrar definitivamente o ato sexual. É como se fosse uma bula explicando os sintomas da primeira experiência sexual e a Hannah Maia tenta passar isso por algumas imagens de arquivos e modelagens uma impressão velada e fragmentada. Lembra também um pouco "Doctor" do Jack Stauber nessa coisa meio ingênua. Mas as escolhas de Maia não me conveceram tanto.

DE BAKERSFIELD PARA MOJAVE | James Benning | 106 min.

Sempre que eu visitava a cidade de Canoas, em um lugar completamente abondonado pela prefeitura, tinha uma ferrovia de trem inativada. Toda vez que o carro passava por cima dos trilhos, do qual sentia o atrito dos pneus por cima das placas de metal, surgia um sentimento de estranheza considerável e um questionamento. Quantos trens já passaram por aqui e por que estão desativados? Então me responderam que a ferrovia desativou por dois motivos: 1) Que não tinha mais utilidade para os trens de carga, por alguma finalidade industrial (possivelmente alguma fábrica aos arredores igualmente foi desativada); e 2) Que se possivelmente naquela ferrovia passavam trens de transporte público foram rapidamente substituídos por uma outra empresa de trens urbanos melhor localizada, interligando toda a grande Porto Alegre. Mesmo assim, ainda no mesmo lugar com a ferrovia intacta no chão, pessoas construíram abrigos e vivem no caminho da estrada de ferro. Aquele sentimento de estranheza a cada vez que eu passava por ali era justamente pelo receio, irreal, de um possível trem fantasma que desse partida na direção dos abrigos. Pois na minha percepção, uma ferrovia desativada implica em si uma aflição pelo movimento. É o Maracanã sem a bola rolando. É o John Ford sem a stagecoach. O filme de James Benning, por outro lado, tanto apresenta essa mística dos trens norte-americanos e a presença evidentemente pós-industrial e o avanço da civilização (trens desgastados passando por lugares abandonados, mortos), uma inseparável da outra, Benning, nessa viagem de Bakersfield ao Deserto de Mojave, constantemente se afasta da civilização registrando os trens. Em sua câmera estática, aguarda sem pressa o movimento custoso do trem, levando cargas e mais cargas para algum lugar desconhecido. Os trens, nesse sentido, são além de uma entidade mística da cultura estadunidense, de uma evidente "evolução" industrial das cidades, mas também carregando na cara amassada, enferrujada, cansada, um personagem sem nome. Em determinado plano, se mistura com a paisagem misericordiosa. A relação entre Benning, os trens e a natureza vai se valer como uma só assim como o poema de Fernando Pessoa sobre os seus versos e as tabuletas:

"Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra."

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